quinta-feira, junho 03, 2010

QUIDAM - Cirque du Soleil em POA // 2

Posto aqui o texto do Eduardo Bueno sobre o espetáculo QUIDAM - do Cirque du Soleil...



"O CIRCO DA TERRA E AS LABAREDAS DO SOL


Eis o circo que voa demasiadamente perto do sol. E mesmo que suas asas de cera possam se derreter, seus saltimbancos tratam de descer ao solo da mesma forma como ascenderam ao topo - por meio das cordas e fitas que os sustentam entre os rasgos da terra e o alvo do céu. Sim, basta erguer a cabeça e você os verá, agora mesmo, viajando com leveza e vigor pelo cordão umbilical que os mantém em suspenso entre o rés do chão e os píncaros do picadeiro.
Mas, no panteão de deuses que o Cirque du Soleil celebra a cada nova apresentação, o herói eleito não é Ícaro - embora um avatar dele surja brevemente em cena, atado a um esqueleto roto de asas despenadas. No picadeiro mítico do Circo do Sol, quem se impõe é Prometeu. Ainda assim, em sua jornada ao cume, não é o fogo dos deuses que esses modernos titãs estão dispostos a obter: o que os audaciosos membros da trupe global querem mesmo roubar são os segredos que regem a mais perfeita das máquinas. Almejam o domínio sobre o corpo humano…
E é de posse dele que retornam de sua jornada pelos fios que conectam seu palco ao cosmos.

Os integrantes de Cirque du Soleil são bonecos de mola, são marionetes, são fantoches - a diferença é que quem manipula as cordas são eles mesmos. Não que essa trupe intrépida não pague o preço de ter surrupiado dos deuses o poder de controlar braços e pernas, torsos e cinturas: a música densa e os céus em geral sombrios refletidos na abóboda de sua tenda parecem ecoar, em Quidam, a presença assustadora de um poder que se mantém evasivo e ameaçador, urdindo raios e trovões, como se clamasse por vingança.
Os acrobatas, malabaristas, equilibristas, trapezistas e ginastas do Cirque mais famoso do mundo sabem, porém, fingir, como em Alegria, que é fácil executar sua missão contorcionista. Brincam com o impossível e afrontam com graça as leis da física e da biologia, dispostos a revelar que o homem, em sua vertigem ousada, de tudo é capaz. Desafiam a lei da gravidade, testam os limites, desprezam a lógica implacável das articulações: transformam cotovelos em dobradiças, joelhos em molas, pulmões em fornalhas. Mostram assim que a linha divisória entre corpo e espaço é mera linha pontilhada, que se dobra, se descostura e se desfaz para além das imposições da anatomia.
Em sua viagem cosmogônica, o Cirque du Soleil recapitula e desconstrói a linha evolutiva da espécie: seus integrantes ora são invertebrados unicelulares, ora répteis que rastejam, ora aves que se alçam. Camaleões das formas, parecem ter mais pernas que os aracnídeos, mais braços que polvos, mais cabeças que medusas.
Desnudam-se, assim e a cada nova exibição, como obreiros a serviço de uma coreografia da transcendência.

E, no entanto, tudo isso se opera com a leveza dos palhaços.
Tudo é representado como mera diversão. Tudo como se fosse… apenas circo. E se hoje tem goiabada, não tem marmelada (mas tem pipoca). O palco giratório do Cirque du Soleil é uma roda de emoções e um programa de auditório. Quem quer bacalhau? Quem quer ser milionário? Nós - mas nos contentaríamos em ter corpos como aqueles.
Sim, Cirque du Soleil é circo, o nome já o impõe. Mas também é teatro - e seu duplo. É cinema mudo e cena falada. É pintura em 3D - ao vivo e a cores. Como a cores e ao vivo toca a banda que o acompanha, arrancando sons eletrônicos em ritmo de rave - nem que seja para abafar o som de ligaduras e tendões e feixes de nervos que em algum momento devem estar se rompendo para que aqueles malabares de ossos e músculos atinjam suas multiformas impossíveis.
Cirque du Soleil é uma sinfonia a ecoar os acordes de uma nova fisiologia. É improviso estudado - e a platéia provê os gatilhos; tanto é que, quando menos espera, você pode ir parar no palco…
Cirque du Soleil são palhaços roxos e coringas aos farrapos e figurinos em frangalhos e gigantes e anões e chinesinhas com diabolos saltitando com seus rolos e fios. E se falta a mulher barbuda e o homem-bala, lá estão os bueiros que se abrem e nos tragam através do espelho, direto às altas profundezas do País das Maravilhas.

Cirque du Soleil é um Coliseu sem sangue, onde os gladiadores exibem seus membros de aço e armaduras de terminações nervosas não para se baterem entre si mas contra as impossibilidades da vã anatomia. A cada performance, eles se transmutam em semi-deuses - só para provar que são humanos. Demasiada, mas sobejamente humanos.
E se o homem é a medida de tudo, como quis Vitrúvio - e da Vinci ecoou -, o Cirque du Soleil enfim dança conforme a música. Talvez por isso, um de seus integrantes gire dentro de uma roda metálica, braços e pernas abertos, como na figura clássica de Leonardo - eis o Homem Vitruviano em pleno movimento. Mas se da Vinci está presente nas entrelinhas, o modelo pictórico parece ser Michelangelo e o dedo de Deus que toca os humanos desde a cúpula da Sistina. Embora, como já dito, deva ser um deus vingativo, a soar em trovões que despencam de nuvens carregadas, mesmo que a figura de uma lua cheia rebrilhe no céu opaco da tenda, no piso da qual as estrelas são de carne e osso.
A presença cenográfica mais nitidamente desvelada pelos spots, porém, é cortesia de Magritte, com seu homem moderno de terno e guarda-chuva, mas sem cabeça e com as poltronas que flutuam erguendo consigo os leitores desatentos de um diário enfadonho - visual ainda assim menos surreal do que as peças que aqueles corpos e aquelas performances pregam a cada novo ato.
Mas ao fim e ao cabo, e para além de tudo isso, o que importa referendar é que Cirque du Soleil é diversão para toda a família.
Leve as crianças. Só não vá tentar repetir nada disso em casa. Afinal, como a intrépida trupe faz questão de deixar claro antes de abandonar o palco, o Cirque du Soleil é mesmo de perder a cabeça."


Eduardo Bueno

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